Um texto sem verbos

A Leila escreve aqui
4 min readAug 22, 2021

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A ideia de escrever um texto sem verbos veio com um pouco de revolta contra essas histórias em que coisas mágicas acontecem do dia para a noite, então eu prometi que quando escrevesse um livro, eu iria colocar um capítulo inteiro em que nada acontece. E para garantir que nada aconteceria eu escreveria esse capítulo todinho sem verbos.

Com o tratamento da megalomania em dia, eu me dei por satisfeita em tentar descrever uma cena comum sem usar verbos. Todas as sacadas geniais que eu tive pensando nesse texto sumiram no exato instante em que eu abri o evernote. Então, me lembrei do que aprendi curso de escrita criativa: nunca confie na primeira versão do texto. E foi assim que eu criei uma primeira versão do texto toda cheia de verbos pra depois substitui-los e ficou assim:

Primeira versão

Sinto alguns pálidos raios de sol cortarem a janela e incomodarem minhas pálpebras. Pisco três vezes, um pouco mais forte na quarta vez e esfrego os olhos. Bocejo e a mandíbula dura depois de uma longa noite de bruxismo estala pra direita e depois para esquerda. Meu corpo pesa sobre a cama, a gravidade tenta me proteger de mais um dia ordinário.

Como sempre eu acordo antes, mas espero o alarme ressoar o som mais doce e menos irritante possível para começar a tirar a preguiça do corpo: primeiro os dedos dos pés, o tornozelo, joelhos pra esquerda e pra direita, estica estica estica a barriga, puxa as mãos pra cima e senta que é pra não dormir de novo. Toda a lentidão e protesto do mundo ao enfiar os pés nas pantufas como se estas fossem uma extensão da cama. O último contato do meu corpo com uma superfície macia e aconchegante. Depois disso será a dureza do sapato social sobre o asfalto.

Nos próximos momentos a ordem dos fatos é completamente aleatória e irrelevante, muitas vezes simultânea. Escovo os dentes, enquanto dobro algumas roupas que já secaram no varal. Tomo banho pensando no que vestir para o trabalho e revisando minha ineficaz lista de compras mental. Enquanto espero o elevador faço malabarismo com o café da manhã em uma mão, o celular rolando o feed na outra e um podcast nos ouvidos. Não degluto nenhuma das informações.

Depois disso eu comecei pelo básico, ou seja, tentar ocultar alguns verbos ou transformar eles em substantivo, adjetivo, etc…

Primeira tentativa com verbos omitidos

As pálpebras incomodadas por alguns pálidos raios de sol cortarem a janela. Pisco três vezes, um pouco mais forte na quarta vez e esfrego os olhos. A mandíbula dura depois de uma longa noite de bruxismo estala pra direita e depois para esquerda. Meu corpo fundido à cama, um escudo de gravidade contra mais um dia ordinário.

Como sempre, olhos abertos e paciência antes do som mais doce e menos irritante possível para começar a tirar a preguiça do corpo: primeiro os dedos dos pés, o tornozelo, joelhos pra esquerda e pra direita, estica estica estica a barriga, as mãos pra cima e coluna em 90º graus pra não dormir de novo. Toda a lentidão e protesto do mundo com os pés enfiados nas pantufas, uma mixuruca extensão da cama. O último contato do meu corpo com uma superfície macia e aconchegante. Depois disso somente a dureza do sapato social sobre o asfalto.

Nos próximos momentos uma sucessão de fatos completamente aleatória e irrelevante, muitas vezes simultânea. Dentes escovados e algumas roupas que já secaram no varal. O chuveiro como sala de reuniões para decisões importantes como meu visual para o trabalho e a minha ineficaz lista de compras mental. A eternidade de andares até o térreo como palco para o malabarismo: o café da manhã em uma mão, o feed mais infinito que o elevador na outra e um podcast nos ouvidos. Sem a devida digestão de nenhuma das informações.

Na segunda tentativa eu me soltei mais da versão original e usei o dicionário analógico pra encontrar palavras menos previsíveis e fugir de algumas rimas involuntárias. Copiei a versão final com algumas edições, as palavras entre hifens foram cortadas. E as partes em itálico são as minhas criações preferidas.

Versão final com os verbos omitidos

Próximo a fronteira da janela do meu quarto com o mundo -real- externo, as pálpebras incomodadas por alguns pálidos raios de sol. -Após- Com quatro pestanejos, sendo o último um pouco mais forte, e o atrito da mão com os olhos: c’est fini a pasmaceira . O estalo da mandíbula escancarada depois de uma longa noite de bruxismo seguido de meu rugido matinal . Meu corpo fundido à cama, um escudo de gravidade contra mais um dia ordinário.

Como sempre, olhos abertos e paciência antes do som mais doce e menos irritante possível para o início do meu ritual de exorcismo contra a preguiça: primeiro os dedos dos pés, o tornozelo, joeeeeeelhos pra esquerda e pra direita, a barriga para a esqueeeerda e para direeeeita, as mãos pra cima e coluna em 90º graus. Toda a lentidão e protesto do mundo com os pés enfiados nas pantufas, uma mixuruca extensão da cama. O último contato do meu corpo com uma superfície macia e aconchegante. Depois disso somente a dureza do sapato social sobre o asfalto.

Nos próximos momentos uma sucessão de fatos completamente aleatória e irrelevante, muitas vezes simultânea. Dentes escovados e o chuveiro como sala de reuniões para decisões importantes como meu visual para o trabalho e a minha ineficaz lista de compras mental. A eternidade de andares até o térreo como palco para o malabarismo: café da manhã em uma mão, o feed mais infinito que o elevador na outra e um podcast nos ouvidos. Sem a devida digestão de nenhuma das informações.

Considerações finais

  1. Deve ser isso o que os escritores fazem quando precisam treinar, vou tentar fazer mais vezes.
  2. Restrições forçam a gente a ficar mais criativo.
  3. O dicionário analógico é meu melhor amigo e nada me faltará.

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Gosto de olhar as estrelas e inventar um nome pra cada uma delas.

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