Sobre castelos e princesas
Estava lendo um romance épico que passa por 5 gerações de uma mesma família quando, na quarta geração, conheci Reginella. Li, reli e me apaixonei tanto por sua história que atualmente meu hobby é vasculhar o livro em busca de seu enredo, copiá-lo e depois traduzi-lo. Puro apego a uma personagem que não consigo abandonar. Mas enquanto esse estudo de tradução e narrativa não sai, vou me esforçar para resumir a história de Regina Parlante sem estragar o trabalho do autor.
Reginella é filha de Gelica e Cipriano. Seu pai é protagonista da história: foi pra guerra, lutou ao lado dos mais destemidos, viveu um romance no front, voltou herói nacional e se tornou um grande empreendedor. A mãe se mudou para a pequena cidade de Balsignano para acompanhar a família e ali se casou. Seguindo essa genealogia, é possível observar que toda a linhagem masculina a personagem é traçada por heróis que venceram guerras e depois sucumbiram de modo mais ou menos triunfal. E toda a sua linhagem feminina é traçada por mulheres que acompanharam seus maridos e desvaneceram à sombra da viuvez. Com exceção de uma tia que nunca se casou, pois vivia em um certo estado de transe espiritual e vez ou outra profetizava sobre o destino da família, por exemplo, quando anunciou a chegada de uma “rainha de alegria e dor”.
Deste modo, a narrativa reservada a Reginella era óbvia: uma infância vivida sob a redoma familiar, a adolescência em um convento e a descoberta do mundo nos braços do marido. Porém, o marido estilhaçou o frágil castelo de sonhos que lhe fora construído. E ao reunir seus cacos Reginella descobre a si mesma.
A doce, pequena, inocente moça criada em família sob uma redoma de vidro, recém desabrochada, saída das Ursulinas sem saber nada do mundo a não ser aquilo que havia lido em seus romances, lícitos ou não, estava morta […]. Em seu lugar havia uma outra Regina, totalmente diferente: uma mulher madura, marcada e desiludida com a vida, sem sonhos, com aspereza no coração, mas também uma força, uma independência, uma autonomia que antes não tinha. Roubaram-lhe os sonhos, não roubaram-lhe a vida. (MASTROLONARDO, 2018, p.701)
Nesse momento eu já a imaginava tomando posse da empresa do pai. Explico: Aniello, seu irmão mais velho, cumpria a contragosto o destino do primogênito de tocar os negócios da família, enquanto seu maior desejo era se dedicar à universidade e aos estudos das letras clássicas. E por isso eu torcia para que essa ruptura na história de Reginella fosse também o marco de um novo legado na família Parlante, com uma mulher conduzindo a riqueza da família e o primogênito finalmente livre para seguir seus anseios literários.
Mas infelizmente o parágrafo de morte e ressurreição seguia com um presságio diferente do meu:
Precisava de tempo até que a ferida profunda que a havia lacerado a alma e o corpo não doessem mais, se fechasse sozinha. Ou então, de um hábil cirurgião que, com agulha e linha na mão, lentamente, sem dor e com doçura a suturasse, se possível sem deixar cicatriz. (MASTROLONARDO, 2018, p.701)
Eis que surge o verdadeiro príncipe encantado, Marcelo Mayer. Foi ele que reergueu o castelo com delicadas colunas feitas de romantismo e arte. Ao seu lado Reginella se sentia forte e independente o suficiente para sair da casa dos pais em Balsignano e viver em Bari sob a proteção de seu amado. A casa de Bari era a mesma do primeiro casamento, mas com uma nova decoração escolhida carinhosamente por Marcelo. Reginella finalmente foi salva e caminhava para o seu “felizes para sempre” com direito à casa, noivado e até um filho.
Neste ponto eu estava radiante de alegria, minhas esperanças foram restauradas pelo amor romântico. Me julguei até um pouco egoísta por querer que ela conquistasse um novo mundo sozinha. Mas o reino de Reginella na verdade deveria ser construído por dor intensa e felicidade frágil.
Digo frágil, pois um trágico acidente matou seu salvador e o palácio de cristal foi mais uma vez destruído. Me revoltei contra esse narrador cruel que não permitia um momento de felicidade e consciência para minha querida Reginella, mas ainda esperava que esse caminho a levasse a algum tipo de redenção. Dessa vez os estilhaços não serviram mais para construção de castelos, mas sim um caleidoscópio:
Não que ela tenha consciência do mundo concreto, não foi jamais consciente dos problemas que todos os dias afligem os seres humanos. Alguma coisa tinha se rompido no frágil mecanismo da sua mente, alguma coisa se perdia: o elemento de conjunção entre a vida ideal e aquela real. O desprendimento foi progressivo, não imediato. Não que tivesse ou chegasse a faltar lucidez. Ao contrário, era alerta e esclarecida, mas animada de um mundo todo seu, feito de música e pintura, de livros e poesia. (MASTROLONARDO, 2018, p.729)
E se o seu destino fosse transformar as idealizações frustradas em catarse artística, eu estaria ali para lhe oferecer toda a minha atenção e empatia de leitora. Por outro lado, eu amarguei até o final do romance a promessa de jamais escrever uma personagem assim. Eu desejo personagens de romances complexos e interessantes o suficiente para não precisarem de um par que completem suas narrativas ou as salvem de castelos destruídos. Ou melhor, não quero escrever para erguer castelos, eu quero mesmo é distribuir as marretas.
Impressões sobre a personagem Regina Parlante, do livro: MASTROLONARDO, Raffaello. La gente del Sud: storia di una famiglia. Milão: Tre60, 2018. p. 701. Tradução não autorizada: Leila Satin.