Eu, escritora? Nem tenho roupa pra isso!

A Leila escreve aqui
3 min readApr 13, 2023

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Parecia ansiedade de primeiro encontro, muito embora fosse o quarto ou quinto. Pelo menos era o primeiro presencial, os outros foram todos online: eu ali de batom, mais um quadradinho no mosaico de outros quadradinhos formando uma bela colcha de aspirantes a escritores. Seguindo por esse ponto de vista era realmente o primeiro encontro, pq agora eu seria vista de corpo inteiro. Meu vestido vermelho de dominação mundial, os melhores acessórios, a maquiagem planejada milimetricamente para dar coesão ao visual. A descrição do evento dizia para trazer nosso material de escrita. Como em todo primeiro encontro, eu queria impressionar e por isso levei o computador, dois dicionários e cada livro de referência escolhido ia pra mochila junto com um comentário ensaiado caso alguém perguntasse. Eu queria muito estar ali, eu queria muito pertencer aquele lugar.

E não há nada melhor para aplacar a ansiedade do que a própria realidade. Uma sala cheia de mulheres escritoras, todo tipo de cabelo, todo tipo de pele, todo tipo de idade, todo tipo de tamanho. O mesmo brilho de esperança nos olhos, os mesmos acenos de consonância durante as partilhas e a mesma história: “Eu sempre gostei de escrever, mas é difícil dizer que sou escritora. Eu escrevia e depois jogava fora pq não estava bom.”

Lembro de quando me preparava para participar do meu primeiro congresso acadêmico, eu estava na cozinha conversando com a minha mãe sobre a dificuldade de escolher a roupa certa para usar no dia da apresentação da minha pesquisa e o que vestir para os outros dias de seminários. Eis que chega meu pai e pergunta:

— Como as suas professoras na faculdade se vestem?

— Ah sei lá, acho que elas se vestem igual todo mundo na fflch. Vestido, sandália, roupa normal.

— Pois é, elas não se preocupam com a roupa que vestem pq estão lá pra dar aula. Você não precisa se preocupar com a roupa se souber que vai lá pra falar da sua pesquisa.

Meu pai me ensinou uma grande lição naquele dia. E ele só teve acesso a esse conhecimento pra me passar pq nunca teve seu lugar questionado, já eu cresci aprendendo a não ir de short apertado na educação física, pq meu corpo não estava ali somente pra aprender handebol (que aliás, nunca aprendi).

Enquanto estávamos ali naquela sala cheia de mulheres, a roupa não era preocupação para nenhuma de nós. Mas o espaço que queríamos ocupar, sim. Jornalistas, advogadas, beletristas, roteiristas. Mulheres que ganhavam a vida pela palavra escrita não se sentiam autorizadas a se dizerem escritoras, faltava escrever um livro, faltava o prêmio do livro que foi publicado, faltava sempre alguma validação. Conversamos, fizemos nosso exercício de escrita e compartilhamos o que conseguimos produzir em aproximadamente 20 minutos de trabalho, que é quase o tempo suficiente pra se fazer um esboço de texto. O resultado do exercício provocou arrepios, lágrimas de emoção, nos transportou para memórias pessoais ou nos remeteu a obras consagradas.

Se em um simples exercício disparador de escrita, com 20 minutos, nosso talento e técnica provocou tantas emoções, o que seremos capazes de realizar com tempo, dedicação e confiança em nosso próprio trabalho? Que diferença faz se temos a carteirinha de escritor ou não?

A diferença é que ali estávamos ocupando um lugar impossível, que não poderia ser nosso. A sociedade quer o tempo todo colocar nosso corpo a serviço, para produzir filhos ou capital. Não é meu lugar de fala, mas quando uma mulher engravida, ela perde o nome e vira mãe. Sua presença no espaço só é permitida acompanhada dos filhos. “Veio sozinha? Cadê as crianças?” Se optamos por não trabalhar e seguir a carreira ainda somos punidas pela possibilidade da maternidade. Qualquer entrevista com mulheres de sucesso virá acompanhada da pergunta “E como você faz pra conciliar a carreira e os filhos?”

Naquela manhã de sábado, algumas crianças devem ter ficado com a avó, alguns trabalhos atrasados ficaram esperando outro momento, tudo o que era esperado de nós ficou pra depois. Nós que estávamos ali, escolhemos a nossa melhor roupa e nos organizamos para fazer algo impossível: ocupar um espaço de criação artística com outras mulheres.

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A Leila escreve aqui

Gosto de olhar as estrelas e inventar um nome pra cada uma delas.