Em caso de emergência quebre o vidro e ouça música pop

A Leila escreve aqui
3 min readJun 4, 2022

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Deu tudo errado. Caí do trilho mágico do sucesso e olha que isso parecia impossível para o meu trenzinho que estava indo tão bem: menina do interior que estudou a vida inteira em colégio católico e passou na USP de primeira com direito a intercâmbio na Itália e tudo. Só por ter saído da cidade e depois do país, já senti que meu bilhete estava reservado na janelinha. Nunca foi sorte, sempre foi privilégio. O começo da carreira foi tranquilíssimo e muito lógico: dar aulas em escolas de referência, fazer mestrado, ser promovida. Tive muitos aprendizados pessoais e profissionais nesse caminho que fizeram com que eu me sentisse madura o suficiente para começar a olhar pros meus sonhos de infância e quem sabe até fazer uma transição de carreira, quase 30 tá na idade, né?

Neste momento eu consigo ver a minha irmã cheia de observações e prontinha pra me ligar depois de ter lido esse primeiro parágrafo pedante. Eu sei que ela vai dizer alguma coisa sobre como a vida não precisa ser linear e lógica como eu imagino, que não tem nada de errado ou de certo em ficar no interior, ou voltar pro interior, que eu não fui nem a primeira e nem a última aluna da USP a ter um início de carreira promissor.

Eu sei. Sei de tudo isso, mas eu preciso me contar uma história que faça sentido. Eu crio essas histórias o tempo todo, desde sempre, é assim que me protejo e me movo pelo mundo, é esse meu jeito de respirar. Às vezes elas fazem sentido para minha realidade e se tornam planos para o futuro ou revisão do passado, mas quando dou sorte elas fogem do controle e se tornam contos, romances, poesia.

E agora eu tenho um assunto novo pra encaixar na minha história. Não é algo que dê pra resolver com um ponto, pula linha e novo parágrafo. Definitivamente é um novo capítulo, um capítulo grande e importante. Um capítulo que vai me fazer voltar para os post-its colados na parede pra ver o big-picture, o storyline do livro da minha vida. Pq é um capítulo que não estava previsto, minha história deveria ser um romance de capa colorida em que tudo dá certo para a protagonista e os problemas se resolvem com música pop e a cena da transformação (você sabe: alisar o cabelo, colocar lentes de contato, etc…).

Mas aí apareceu esse capítulo em que tudo dá errado. Nossa protagonista sofreu uma quebra de expectativa quando foi demitida do emprego responsável pela grande transição de carreira e ascensão profissional.

E se até agora minha irmã não interrompeu a leitura pra me ligar é porque nós já tivemos essa conversa em algum outro momento. Nessa conversa minha irmã mais velha explica as coisas que eu estou vivendo pela primeira vez. Ela me diz que perder o emprego não é o fim do mundo, que eu sou jovem e novas oportunidades certamente vão surgir, que isso faz parte da vida e vai me incentivar a fazer grandes planos e nessa hora está de braços abertos dizendo que eu posso fazer o que eu quiser, inclusive ir pra Itália!

Eu sei. Sei de tudo isso, mas eu preciso criar histórias pra me mover no mundo, lembram? Então eu preciso aproveitar o privilégio de viver o drama do “tudo deu errado” pra completar a frase “se tudo der errado eu…” e saber lidar com esse novo capítulo.

O mais lógico, ou melhor, mais responsável seria voltar para o interior, economizar dinheiro e procurar um emprego que fizesse sentido pra minha carreira. Mas quem se interessaria por essa história? Eu mesma lendo o final de um capítulo assim gritaria para o papel (na verdade para o kindle) que a personagem está perdendo a grande oportunidade de se jogar em seu grande e verdadeiro sonho de ser uma escritora. E justamente agora que ela não tem mais nada a perder e está livre da expectativa de sucesso social, já que agora é uma grande fracassada!

Vamos lá, garota! Mostre o que você é capaz! Faça a cena da transformação! Faça uma tatuagem, vista uma meia-arrastão, mostre para todo mundo seu lado aventureiro e inconsequente! Se torne a escritora boêmia que vive de sua arte na cidade que nunca dorme e tudo pode acontecer!

Acho que estou começando a ouvir algum pop-rock britânico, vocês não?

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A Leila escreve aqui

Gosto de olhar as estrelas e inventar um nome pra cada uma delas.