Dá licença e desculpa qualquer coisa
Engraçado como o capitalismo funciona. Até outro dia eu me sentia acolhida e confortável em meu apartamento e falava coisas sobre o meu apartamento e planejava comprar novas cortinas para o meu apartamento, mas no exato instante em que perdi minha principal fonte de renda para pagar o aluguel comecei a sentir um leve desconforto de estar ocupando um espaço que não era meu. Me senti visita na minha própria casa e no mundo. A permissão de existir estava apenas emprestada, mas obviamente eu poderia recuperar os plenos direitos de viver assim que voltasse a produzir e contribuir para o capital.
Me questionei em dois momentos do meu dia: quando precisei fazer as compras do mercado e quando decidi que o melhor pra minha saúde mental seria ir trabalhar (escrever e procurar emprego) em algum lugar fora de casa. Pra começo de conversa, fazer as compras do mercado é algo que sempre faz com que eu questione minha própria existência, pode apostar que isso já apareceu em alguma personagem minha, mas o questionamento dessa vez era se eu podia ou merecia comprar presunto cru e uma caixa de paçoquinha. Esses dois itens, que já estavam na minha lista antes da demissão, são completamente desnecessários e supérfluos e por isso mesmo estavam na parte de “extravagâncias do mês”. E além disso, eu tinha dinheiro para comprá-los pq eu já tinha recebido o salário que comporta todos os meus gastos, inclusive a seção de extravagâncias da lista de compras. Tudo isso era permitido quando eu estava empregada e iria receber o mesmo salário no mês seguinte, mas agora a situação era diferente, eu não sabia quando e nem quanto iria ganhar o suficiente para manter uma seção de extravagâncias na minha lista.
A mesma coisa aconteceu enquanto eu me arrumava pra sair de casa. Eu pesquisei qual seria o modo mais econômico de chegar ao lugar em que escolhi ir pra escrever e procurar emprego e calculei quanto me custaria por mês se a situação se prolongasse e essas idas virassem rotina. Até aí esses questionamentos poderiam ser interpretados como um pensamento prudente e responsável, certo? Certo, a não ser que eles viessem com um carga de culpa por desejar essas extravagâncias. As duas coisas estavam dentro do que as minhas possibilidades atuais permitiam, as duas coisas me ajudariam a enfrentar o primeiro dia sem trabalho de um jeito mais leve e até feliz, mas parecia que não era permitido pensar em querer esses luxos por estar sem trabalho.
Se você está acompanhando este diário desde o primeiro dia, deve se lembrar de quando eu falei que a transição de carreira veio depois de um período de muito crescimento pessoal e profissional, não é mesmo? Então considere que esses anos de experiência foram acompanhados de terapia. E se tem uma coisa que eu aprendi, foi a lidar com os questionamentos da minha vida que envolvem culpa. E agora eu compartilho com vocês a maior lição que aprendi até hoje: Não existe guardinha.
Há duas possibilidades de você se sentir culpado por algo: quando uma pessoa real põe o dedo na tua cara e te cobra coisas ou quando o guardinha imaginário da sua mente te cobra coisas. Na primeira hipótese vale a pena avaliar se essa cobrança é realmente um compromisso seu (tipo pagar o aluguel) ou se é expectativa da outra pessoa (tipo mandar flores no dia dos namorados). Ma na segunda hipótese a resposta é simples e direta: não existe guardinha. Antes de encher o carrinho do mercado ou arrumar a mochila pra sair, uma coisa da minha lista de tarefas já estava feita: pagar o aluguel. Então o único compromisso real que poderia ter vindo em minha direção já estava honrado. Não tinha nenhuma culpa no cartório além da cobrança imaginária de que eu não poderia me permitir prazer algum enquanto minha existência fosse emprestada, ou seja, enquanto eu não estivesse contribuindo para o capital.
E o que a terapia me ensinou a fazer quando aparecesse o guardinha? Faça birra! Quer dizer então que eu não posso comprar presunto caro e nem ir trabalhar num café pq mês que vem ninguém vai enriquecer com a força do meu trabalho? Pois bem, se amanhã eu não tiver dinheiro pra comprar pão, então hoje mesmo eu vou comer brioche. TOMA ESSA MARIA ANTONIETA!
Prestem atenção: o mundo sempre vai cobrar pela nossa existência, mas você não deve pedir licença pra existir. Lugar de mulher é onde ela quiser. Tão óbvio e ao mesmo tempo difícil. Eu quero ficar em São Paulo, eu gosto do meu apartamento, gosto da vida que eu tô construindo aqui. Não preciso voltar pro interior se não quiser, não preciso me sentir visita em minha própria casa.