Café Müller

A Leila escreve aqui
3 min readApr 20, 2023

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feito por mim no paint com recorte de uma imagem criada por inteligência artificial

— Então a gente se encontra no café?

Era o Café Müller que ficava perto da redação, mais comum seria descermos ali no Estadão mesmo, mas depois decidimos que era melhor irmos a um lugar mais discreto para tratar de negócios. Nós dois casados. Eu desconstruída e ele obedecendo a estrutura social de anunciar o primeiro filho só agora pra comemorar a promoção.

Hoje nenhum de nós trabalha no jornal, mas a força do hábito nos obriga a continuar tratando de negócios ali. O garçom já nem pergunta nosso pedido, apenas me vê entrar e começa a preparar meu café com licor de amarula para servir 7 minutos depois, acompanhado de água com gás e limão espremido para Fernando. A bolachinha vem no meu pires por direito, mas é Fernando quem fica com ela. Inesperadamente ele se atrasou por cinco minutos, então o café foi servido alguns graus mais frio.

Ele entra passando a mão pelos cabelos e sorrindo de canto, vem em minha direção, me beija na testa e segura minhas mãos. “Como você está, minha querida?”. Senta-se de lado, encostado na parede e eu com as pernas cruzadas pra dentro da mesa. Ele está sempre de barba feita, mas aqueles três pêlos continuam intactos no canto da orelha, será que a Camila também não se incomoda?

Digo que meu marido o felicita pelo lançamento da revista e que fizemos questão de solicitar a assinatura por meio impresso em nome dos velhos tempos. Ele se desconcerta, não tanto pelos elogios da nova publicação, mas ele sempre se desconcerta quando algo na conversa o faz lembrar que pelo meu lado não somos amantes, ele é apenas mais um nó em minha rede de afetos. Para se vingar ele busca o celular no bolso, lê alguma mensagem com cara de preocupação e não coloca o telefone no mudo.

— Imagino que hoje teremos menos tempo do que o normal, você chegou atrasado…

— Hoje está complicado.

Sempre está complicado, às vezes difícil, raramente tranquilo. A frequência dos nossos encontros está diretamente ligada à sua temperatura conjugal. Na tranquilidade ele não precisa de mim, quando está difícil nós viajamos para a mesma pousada em Paraty, mas quando está complicado depende. Hoje depende se Camila irá convencê-lo a trocar os móveis da sala.

Exercício de escrita inspirado na obra “Café Müller” de Pina Bausch para o Clube da Escrita.

Me faz mais sentido associar a dança com poesia, por conta da ocupação do espaço, mas principalmente pelas lacunas. Em ambas as partes me falta um narrando explicando os passos das personagens ou bailarinos em cena. Por isso mesmo a poesia é uma escrita mais distante pra mim, ou ela vem pronta como uma música que de repente surge na nossa cabeça e nos acompanha o dia todo ou eu só fico cantarolando palavras soltas e tentando reproduzir a melodia que não vem.

Fui pra narrativa que é meu campo de trabalho. O cenário me passou a sensação de um romance noir e notei uma mulher ao fundo do cenário totalmente à margem do que acontecia no primeiro plano, daí veio a ideia de falar sobre traição. Mas no primeiro plano a única pessoa que parecia interessada naquela união era o homem que entrava e saia pela porta, entendi então que seria um casal aberto e bem resolvido com a situação e outro tradicional que fatalmente traria o sofrimento feminino. Os personagens estavam prontos.

A repetição constante que chega à automação e ao desleixo dos gestos que antes eram tão meticulosamente executados. Isso me fez pensar que esse casal de amantes já não estivesse tão interessado na adrenalina do relacionamento proibido, tentei usar palavras que reforçassem esse tédio do hábito. E mesmo assim ao final da dança a única pessoa que se move é a mulher. Pensei então que ela se viu presa em um relacionamento livre e para mantê-lo precisava dessa interação com um amante.

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A Leila escreve aqui

Gosto de olhar as estrelas e inventar um nome pra cada uma delas.