2 de Novembro: Dia da Mentira

A Leila escreve aqui
3 min readNov 7, 2022

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Marisa é uma mentirosa compulsiva. Em quase setenta anos já mentiu o equivalente a mais que o dobro de sua idade. Não se lembra quando foi que criou sua primeira história da carochinha , pois contava uma nova lorota sempre que tentava resgatar esse momento.

Ela já fez verdadeiras amizades na fila de cinema, mentindo que conhecia velhos amigos que nunca tinha visto e até foi madrinha de um filho legítimo de seu mexerico, quando disse a um primo que sua vizinha estava muito interessada em conhecê-lo melhor. Marisa é presença garantida em todas as festas da família e de seus amigos, tem sempre alguém que, cutucando a pessoa do lado, chama pela amiga mentirosa e diz em voz mais alta: “Oh Marisa, conta daquele dia que você desceu pra Santos no feriado de Aparecida” ou “… como foi mesmo que você ganhou o sorteio da tele sena, mas não conheceu o Silvio pq ele tava com conjuntivite?” e a mesa toda se prepara para uma nova performance de Marisa.

“Mas são mentirinhas boas, que só fazem o bem” é o que ela pensa durante a missa quando o Padre olha desconfiado em sua direção a cada vez que no evangelho Cristo diz “Em verdade em verdade vos digo…”

E assim as balelas seguiam desatinadas, companheira constante de Marisa até que outras mentiras começaram a surgir em sua vida. Elas estavam por todo lado, mas principalmente nos grupos do zap e nos posts do face. Essas não promoviam novas amizades, nem selavam casamentos, ao contrário, ela via os amigos trocarem de mesa na festa pq cada um tinha recebido uma fake news diferente. Chegou ao ponto de se sentir ofendida quando descobriu que a maioria delas era criada e divulgada por robôs, foi como se tivessem usurpado uma arte que ela levou anos para desenvolver com perfeição.

O medo de que as suas mentiras virassem farinha no mesmo saco das fake news, fez com que Marisa procurasse um remendo. Pensou em começar terapia, mas era tentação demais ter toda a atenção de alguém desconhecido e ainda mais interessado em compreender suas histórias. Então, achou que seria melhor tentar falar com o Padre primeiro, talvez o ambiente do confessionário fosse mais propício.

— Minha filha, a mentira é a sombra da verdade, jogue luz sobre a mentira e ela desaparecerá. Quando você tiver vontade de contar uma mentira, conte a alguém que saiba da verdade e esta pessoa será seu guia de volta à luz.

— Padre, com todo o respeito, mas o senhor não entendeu bem a questão. Minhas mentiras são boas, as pessoas me pedem pra contar, se eu parar de mentir fico sem assunto, acho até que vou perder os amigos.

— Então, tente falar para quem não vai poder te ouvir. Hoje é dia de finados, aproveite para visitar os parentes e pessoas queridas que já estão na companhia divina e tente contar mentiras sobre eles.

— Ai Padre, que penitência esquisita…

— É isso, ou se preparar para 40 dias sem mentira na quaresma. É pegar ou largar.

Marisa saiu do confessionário ponderando as opções que lhe foram dadas: terapia, uma visita ao cemitério ou quarenta dias em silêncio. Resignada passou na floricultura e comprou um maço de crisântemos, para cada mentira que escapasse, uma flor no túmulo da família.

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A Leila escreve aqui

Gosto de olhar as estrelas e inventar um nome pra cada uma delas.